Um pouco de política, um pouco de humanidades, um pouco de tudo, generalidades, na busca do todo.
quinta-feira, 26 de maio de 2011
Sem identidade
Naquela manhã foi difĩcil corpo e mente aceitarem qualquer comando.
O fim de semana prolongado pelo feriado passara depressa. Era dia de batente e hora de ir ao trabalho. Olhou várias vezes o relógio, até se certificar que era impossível adiar o momento de se levantar da cama.
Foi ao banheiro a contragosto e demorou-se cerca de dez minutos na privada, cochilou algumas vezes nesse intervalo.
Finalmente, levantou-se e foi para a pia molhar o rosto e escovar os dentes. Voltou ao quarto, fez um alongamento para aliviar as dores nas costas e se vestiu lentamente.
Escolheu aleatoriamente a roupa que iria usar, sem se preocupar com as cores que mais combinariam naquela manhã.
Foi ao quintal, pegou o jornal, leu o que mais o interessava, com preguiça de fazer o café da manhã seguiu para o trabalho em jejum, no seu velho automóvel.
Chegando ao destino, entrou no estacionamento. O funcionário lhe deu o ticket e estranhamente não o comprimentou. Seguiu pela calçada por alguns metros e entrou no edifício onde ficava o escritório em que trabalhava. Passou o crachá pela catracra eletrônica mas não conseguiu destravá-la. O vigia pediu seu nome e número da cédula de identidade, anotou com dificuldade os dados no papel sob a prancheta, abriu a portinhola lateral e o deixou entrar.
Quando chegou na sala de trabalho encontrou outra pessoa em seu lugar. Bom dia, respondeu a pessoa sentada à sua frente. Posso ajudar?
- Eu que pergunto, você está no meu lugar.
- Engano seu. Esse é o meu lugar.
- Vamos deixar de brincadeira, eu não te conheço e trabalho aqui há anos.
Naquele instante, Regina entrou na sala:
- Bom dia, Sergio.
- Bom dia, responderam os dois praticamente ao mesmo tempo.
- Espera aí, o Sergio sou eu.
- Sergio, que brincadeira é essa?, disse Regina, quem é esse?
Regina apontava para o homem que estava de pé à sua frente.
- Para de brincadeira, Regina, vai dizer que nâo me reconhece, sou eu.
- Eu também não sei quem é esse sujeito. Entrou de repente, pensei que fosse um cliente, mas ele começou dizendo que esse lugar era dele.
- Vou chamar o segurança, disse Regina.
Algum tempo depois, chega o segurança.
- Qual é o problema, pergunta ele.
- José, não está me reconhecendo?
- Eu deveria?
- Parem com a brincadeira, todos vocês! Qual é, tá todo mundo doido? Sou o Sergio, vocês me conhecem, sou colega de vocês há anos.
- Acalme-se senhor, diz o segurança.
- Esse cara entrou aí dizendo que era eu, que o lugar era dele, respondeu o homem que estava sentado.
- Mas esse lugar é meu. Quer ver, deixa eu abrir a gaveta, vou mostrar fotos minhas e de minha mãe. Quase derrubou o segurança antes que ele pudesse impedi-lo de chegar à mesa. Não havia foto nenhuma, apenas um crachá com a foto do homem que estava sentado.
- Olha não sei quem é você, nem o que tomou, mas já é hora de se retirar.
A essa altura, várias pessoas foram atraídas pelo som da discussão, incluindo o diretor.
- O que está acontecendo aqui, porque essa gritaria?
- É esse cara, chefe, ele chegou aqui, disse que essa era a sua sala e que o meu lugar era o dele.
- Desculpe, senhor, mas o que deseja.
- Chefe, sou eu, o Sergio!
- Ora, você não é o Sergio.
A resposta do chefe o deixou atordoado. Saiu da sala correndo, esbarrando nas pessoas, necessitava respirar. Já na rua, foi a um bar, pediu água, tentou se acalmar, por ordem no pensamento. Pediu um café. O balconista era seu amigo.
- Silvio, como vai.
- Vou bem senhor.
- Senhor? Ora, Silvio, corta essa, é o Sergio, que é isso, tá todo mundo louco, o que está acontecendo.
- Sinto muito, senhor, mas é a primeira vez que o vejo.
Saiu do bar desnorteado, pagou a conta com o pouco dinheiro que tinha. Na mesma rua, ficava a agência do banco onde era correntista.
Chegou lá, fez o gesto para pegar a carteira e sacar o cartão de movimentação financeira, mas o bolso estava vazio. Foi até o gerente que na sexta-feira anterior havia lhe concedido um empréstimo.
- Nascimento, estou numa situação esquisita, esqueci a carteira em casa, estou com pouco dinheiro no bolso, posso fazer um saque avulso no caixa?
- Claro, afinal o senhor é correntista, não é mesmo?
- Graças a Deus, Nascimento, você me reconheceu, disse, aliviado.
- Reconhecer, não sei, mas se o senhor conhece o meu nome deve ser cliente da agência, embora não esteja lembrado de sua fisionomia.
- Já sei, tá todo mundo de sacanagem. Estão todos de acordo. É uma grande combinação. É tudo brincadeira. Tão querendo me sacanear, todos vocês. Vou voltar ao escritório e dizer para todos que conseguiram me enganar e que a brincadeira acabou por aqui.
Na entrada do prédio, encontrou com o mesmo vigia que viu pela manhã e com José, o segurança.
- Tá bom, vocês me enganaram direitinho, mas agora chega, preciso voltar a trabalhar.
- Senhor, isso já passou dos limites, vamos circulando, não sei como entrou no prédio antes, mas agora sou obrigado a retirá-lo do recinto.
- Eu entrei como faço todas as manhãs, pela catraca,o seu colega vigia me viu entrar.
Aproveitando um descuido do vigia e do segurança, ele pula a catraca e corre em direção ao escritório com José em seu encalço. O segurança e o vigia o alcançam. Ele tenta chegar às portas do elevador, mas José coloca as duas mãos em seus ombros com força. O homem tenta se desvincilhar, escorrega e bate a cabeça no assoalho. O choque faz com que perca os sentidos.
Naquela manhã, estava escuro e foi-se clareando aos poucos. O sol começara a se propagar no quarto, pelas fendas da janela. Era segunda-feira imediatamente após o fim de semana prolongado pelo feriado. Dia de trabalho. Como por reflexo, ele tenta levantar o braço a procura do pulso para verificar as horas no relógio, é impossível, com o esforço o que sente é a agulha espetada na veia. Os braços, as pernas, estão finas e enrugadas. A cama é estreita, nas laterais há grades de ferro. Nela há um velho, alguém que sabe exatamente quem é e onde está. - Olha, ele abriu os olhos, ouve alguém dizer ao seu lado. Naquela manhã de segunda-feira pós-feriado, é inútil, a mente não comanda mais o corpo. O tempo se esgota, não há passado tão pouco futuro.
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