quarta-feira, 6 de julho de 2016

A história de Robson Mendonça


De morador de rua a empreendedor de projetos sociais

São 16 horas de uma tarde fria, estou em uma galeria do centro antigo de São Paulo, próxima do Largo São Francisco, onde fica a Faculdade de Direito da USP. Marquei uma entrevista para esse horário, mas o entrevistado não está no local. Ligo para o seu celular e ele me pede que espere mais um pouco. Nesse meio tempo, chegam três jovens, entre 18 e 20 anos, que me convidam para entrar.
Entro em uma loja, misto de escritório e habitação, onde há um órgão eletrônico e uma bateria. Os instrumentos musicais, fico sabendo depois, fazem  parte de um projeto.
Há ainda outro rapaz e uma moça no local e uma cadela que, curiosa, me examina pelo olfato. Chega depois um casal empurrando um carrinho de bebê. No seu interior uma bebezinha de poucos meses. A mãe é uma adolescente. 
Pouco tempo depois chega Robson César Correia de Mendonça, gaúcho de Alegrete, 66 anos. Entra esbaforido, quase sem fôlego e me pede desculpas pelo atraso. Robson foi durante oito anos morador de rua e fundou  o “Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo”, fruto de sua própria experiência pessoal.
Robson inicia nossa conversa recitando um poema que faz parte de um livro de poesias que lançou. Arremata com um repente que compõe na hora. O drama de Robson começa quando ele chega em São Paulo, em 1988, quando diz ter sido sequestrado.  Os bandidos, segundo ele, ficaram com todas as suas economias e documentos. Tinha o equivalente a R$ 200 mil e sua intenção era investir o dinheiro aqui e trazer a mulher e os filhos. Os sequestradores também o obrigaram a sacar mais algumas economias que mantinham em banco.
Sem direitos e documentos, tenta fazer contato com os familiares e recebe outro choque: mulher e filhos morreram vítimas de um acidente na estrada quando se dirigiam a São Paulo. Robson, que era agropecuarista no Rio Grande do Sul, passou a ser morador de rua e se entregou às drogas. Consumiu álcool, maconha e cocaína, só não usou o crack.
Antes de iniciar a entrevista, conversamos sobre a sua infância e adolescência no campo. Aos dez anos, ajudava o pai na lavoura e a cuidar dos animais na propriedade da família. Ao se tornar adolescente passou a trabalhar nas fazendas vizinhas. Seu pai achava que para dar valor aos negócios, os filhos deveriam antes aprender o ofício trabalhando como empregados em outras fazendas. Assim, Robson se empregou nas redondezas e exercia diversas atividades. Plantava arroz, soja e milho, cuidava dos animais e também foi domador de cavalos. De início, não recebia dinheiro e ganhava um animal em troca de dois que amansava, depois, com a pressão dos sindicatos, passou a ser remunerado.
Após a morte do pai, vendeu a fazenda que havia herdado e decidiu com a mulher que se mudariam para São Paulo, para proporcionar aos filhos boas escolas e a oportunidade de cursarem uma faculdade. O sonho acabou com a morte dos familiares. Procurou abrigo em albergues, passou noites ao relento. Foi um golpe muito forte, diz ele, de um sujeito, que tinha propriedade e dinheiro, passar a ser morador de rua.
Quando foi solto pelos sequestradores, Robson percorreu algumas delegacias para registrar a ocorrência e a Polícia indicou a ele o Ministério Público. Sem ter onde ficar, o MP o encaminhou a um albergue no bairro de Santo Amaro. Mas ele não se adaptou à rotina do alojamento e preferiu morar ao relento.
Uma vez, recorda, tentou entrar na Câmara Municipal para telefonar aos parentes e foi impedido devido à sua condição. Se sentiu discriminado e humilhado. “O problema do morador de rua está todo na discriminação. Pensei: A gente tem que fazer alguma coisa para as pessoas verem que somos seres humanos como qualquer outro”. Foi quando chamou alguns colegas de albergues para iniciar o movimento. Robson esclarece que não há apenas um tipo de pessoa morando nas ruas.
Elas vão para as ruas por “n” motivos, diz, principalmente por desavenças familiares ocasionadas por consumo de drogas, perda de emprego e capacidade de sustentar a casa, tragédias, maus tratos etc. Há os que vivem nas calçadas, nas marquises e viadutos; outros, considerados com pessoas em situação de rua, moram em albergues, moradias provisórias, aluguéis sociais, favelas e cortiços e precisaram deixar esse tipo de moradia precária; há os “trecheios” que vivem se locomovendo de uma cidade para outra e, geralmente, vivem de artesanato; e há ainda, os “escondidos, que saíram do sistema penitenciário e vivem de pequenos furtos e do tráfico de drogas, por não conseguir reinserção na sociedade.
Para cada um desses perfis, é preciso criar uma política pública específica. Para a população em situação de rua é preciso uma política de habitação própria, defende Robson.  Há pessoas que moram na periferia e trabalham na região central e por não terem dinheiro para gastar em condução acabam pernoitando nos albergues.

Bicicloteca

Em 2010, o “Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo” foi regularizado com ajuda de alguns advogados, que elaboraram os seus estatutos. O movimento atualmente  defende os representados em diversos fóruns. Na mesma época, Robson teve a ideia de criar uma bicicleta adaptada para servir de biblioteca ambulante. Na sua garupa foi acoplado um baú para carregar livros de diferentes gêneros. 
Nasce a “Bicicloteca”, que permanece estacionada nas praças e empresta livros aos moradores de rua, sem que eles se sintam obrigados a devolvê-los. “Quando eu era morador de rua e ia a uma biblioteca, as pessoas não queriam sentar perto de mim, eu tentava retirar um livro mas não podia porque não tinha comprovante de endereço. Então eu imaginei criar uma biblioteca em que o interessado não precisasse de documentos para retirar livros. Ele pegaria e levaria o livro, sem compromisso sequer  de entregá-lo”.
O primeiro veículo foi doado pelo Instituto Mobilidade Verde, em cerimônia na Biblioteca Mario de Andrade. No mês seguinte, ele foi furtado. Uma nova doação, dessa vez do Instituto Melhoramentos, e a bicicleta ganhou motor elétrico movido a energia solar e wifi doado pelo Pão de Açúcar.
Desde então, o projeto recebeu mais dez veículos que foram doados por advogados.  Atualmente, ele  conta com 28 unidades circulando por São Paulo, em diversos bairros da cidade, municípios  do Interior e de outros estados. A marca, entretanto, foi apropriada, segundo Robson, pelo Instituto Mobilidade Verde, que a registrou.
Mas quando algum interessado quer implantar o projeto em seu município, ele procura o Robson que viabiliza o equipamento e o entrega. A única exigência é que a unidade seja utilizada para atender o morador de rua e que não haja a obrigatoriedade de a pessoa registrar o nome ou devolver o exemplar.
O projeto é conhecido internacionalmente no Japão, Europa e Estados Unidos e conta com um acervo de 78 mil livros provenientes de doação ou reciclados, armazenados em dois espaços, nos bairros da Bela Vista e Liberdade.
Robson diz que a sua fonte de inspiração foram os livros A Revolução dos Bichos, de George Orwel, e A Droga da Obediência, um romance de Pedro Bandeira. Segundo o site www.bicicloteca.com.br, todos os meses são recolhidas, pela Cooperativa dos Catadores e Catadoras do Glicério, 1 tonelada de livros de escritórios e residências. Os que estão em pior estado são aproveitados como sucata pela indústria, mas há os que podem ser reaproveitados e esses são oferecidos ao projeto.
Outros projetos começaram a ser desenvolvidos a partir desse primeiro. Robson conta que começou a receber bicicletas de doação e daí surgiu mais um projeto, o “Pedal Social”, em 2011, que empresta bicicletas aos moradores de rua que necessitam delas para serviços de entrega de mercadorias para estabelecimentos comerciais.
O interessado preenche um cadastro e fica de três a seis meses com a bicicleta, sem custos. Assim, ele tem condições de ter o seu dinheiro, alugar um quarto e ter uma oportunidade para deixar de morar na rua. 
Já o projeto “Recomeçar Vida Nova”, desenvolvido a partir de 2012, assiste a jovens que saíram da Fundação Casa, a antiga Febem, e que estão em regime de liberdade assistida. Robson atende a cada três meses, oito adolescentes. Eles são encaminhados para obter documentos, retomar os estudos e conseguir o primeiro emprego.  O projeto tem parceiros no Ministério Público Federal, Receita Pública Federal,  Defensoria Pública do Estado e da União, escritórios de advocacia, entre outros.

Adolescentes

Robson reformou a sede do Instituto, construiu um mezanino com R$ 5 mil conseguidos por um site de crowdfunding, e abriga os jovens no local, onde antes funcionava um armarinho e que foi cedido por um empresário para montar a sede do movimento.
R, a adolescente, do início do texto, morou lá. Ela tem 16 anos e fala que foi para as ruas devido a más companhias de escola. Com elas, passou a consumir maconha, o que não foi aceito pelo pai. Acabou indo parar nas ruas. Tinha 13 anos quando isso aconteceu e foi encontrada por Wesley, um dos filhos de criação de Robson. “Eles são assim, vão chegando e acabam me chamando de pai”, afirma Robson.
Wesley falou para R sobre o local de acolhida dos menores e ela passou a morar na habitação. Foram quatro anos, afirma. Hoje, a adolescente mora com Wesley em uma casa que ele herdou do pai biológico, junto com a filhinha recém nascida. Ela fez curso de panificação e Wesley conseguiu recentemente um emprego. “Se não fosse pelo senhor Robson, não sei o que seria de mim. Já dei muito trabalho para ele”, conta R.

Músicos

Os aparelhos musicais que estão na sede do movimento são utilizados por moradores de rua em eventos do projeto “Resgatando Vidas em função da Música”, em parceria com a subprefeitura da Sé. Eles têm bandas de diferentes estilos musicais e se apresentam em promoções culturais da municipalidade. Uma vez por ano, o movimento promove ainda o projeto “Cultura e Cidadania para a População de Rua na Cidade de São Paulo”. O evento consiste em um dia inteiro  de ações sociais, como emissão de documentos, serviços de corte de cabelo, serviços de beleza, acompanhados de apresentações musicais. São atendidas, nessas ocasiões, de sete a oito mil pessoas, segundo informações de Robson.
“Sou casado com a morte, ela pediu divórcio e, enquanto não pede pensão alimentícia, estou no lucro”, afirma Robson que está em tratamento contra o câncer e outras doenças. Ele diz que o principal responsável pela atual situação dos moradores de rua é o governo que não tem política pública definida e baseia suas ações no assistencialismo. Quem se aproveita da situação são algumas organizações não governamentais que, apesar de receberem muito dinheiro, gerenciam mal os albergues, no que qualifica como a “indústria da miséria”.
O assistencialismo também influencia o morador de rua, na concepção de Robson. Quando consegue alugar um local para morar, ele se vê obrigado a assumir uma série de responsabilidades, como arrumar dinheiro para o aluguel ou conseguir comprar alimentos. “Ele pensa que quando vivia em albergues, não precisava pagar aluguel, e o alimento ele tinha como arrumar. Quando eu consegui sair da rua e passei a catar papelão para arrumar dinheiro, vi que podia viver diferente. Então eu passei a dizer aos outros moradores de rua que, se eu pude sair, ele também podia”, conta Robson. Ele recorda um dia em que uma mulher lhe perguntou  o que ele precisava para sair da rua.  Ele respondeu que se tivesse dinheiro alugaria uma habitação e nunca mais voltaria. Ela lhe deu R$ 250 e ele conseguiu um local para morar seus dois filhos de criação. Foi o que mudou a vida de Robson, segundo ele.
Hoje, Robson reside com os adolescentes na  sede do movimento. Lá estabeleceu uma série de regras para os hóspedes, tais como evitar desperdícios, fixar horários para refeições,  entrada e saída do estabelecimento e antecipar o aviso para recebimento de visitas. Quem não cumprir o regulamento está fora.
Robson diz que resolveu deixar o local onde morava e se transferir para a sede, porque, com o que economizasse, poderia empregar em suas políticas sociais para a população em situação de rua. Faço tudo o que o governo não faz, afirma. Providencio fotos para documentos, encaminho para cursos profissionalizantes, para  empregos e busco recursos para as pessoas pagarem uma pensão para morar.

O que é que falta para o morador de rua, pergunto. Nada, diz ele. Nós temos a Lei 12.316, o Decreto 40.232 (municipais), que fala tudo sobre o morador de rua, e o Decreto Federal 7026, só que governo nenhum cumpre a legislação. O Ministério Público já me processou várias vezes porque eu o acusei de omisso em cumprir o seu papel de fiscalizar o cumprimento da lei”, afirma Robson.

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