De morador de rua a empreendedor de projetos sociais
São 16 horas de uma tarde fria, estou em uma galeria do
centro antigo de São Paulo, próxima do Largo São Francisco, onde fica a
Faculdade de Direito da USP. Marquei uma entrevista para esse horário, mas o
entrevistado não está no local. Ligo para o seu celular e ele me pede que
espere mais um pouco. Nesse meio tempo, chegam três jovens, entre 18 e 20 anos,
que me convidam para entrar.
Entro em uma loja, misto de escritório e habitação, onde há
um órgão eletrônico e uma bateria. Os instrumentos musicais, fico sabendo
depois, fazem parte de um projeto.
Há ainda outro rapaz e uma moça no local e uma cadela que,
curiosa, me examina pelo olfato. Chega depois um casal empurrando um carrinho
de bebê. No seu interior uma bebezinha de poucos meses. A mãe é uma adolescente.
Pouco tempo depois chega Robson César Correia de Mendonça,
gaúcho de Alegrete, 66 anos. Entra esbaforido, quase sem fôlego e me pede
desculpas pelo atraso. Robson foi durante oito anos morador de rua e
fundou o “Movimento Estadual da
População em Situação de Rua de São Paulo”, fruto de sua própria experiência
pessoal.
Robson inicia nossa conversa recitando um poema que faz
parte de um livro de poesias que lançou. Arremata com um repente que compõe na
hora. O drama de Robson começa quando ele chega em São Paulo, em 1988, quando
diz ter sido sequestrado. Os bandidos,
segundo ele, ficaram com todas as suas economias e documentos. Tinha o equivalente
a R$ 200 mil e sua intenção era investir o dinheiro aqui e trazer a mulher e os
filhos. Os sequestradores também o obrigaram a sacar mais algumas economias que
mantinham em banco.
Sem direitos e documentos, tenta fazer contato com os
familiares e recebe outro choque: mulher e filhos morreram vítimas de um
acidente na estrada quando se dirigiam a São Paulo. Robson, que era
agropecuarista no Rio Grande do Sul, passou a ser morador de rua e se entregou
às drogas. Consumiu álcool, maconha e cocaína, só não usou o crack.
Antes de iniciar a entrevista, conversamos sobre a sua
infância e adolescência no campo. Aos dez anos, ajudava o pai na lavoura e a
cuidar dos animais na propriedade da família. Ao se tornar adolescente passou a
trabalhar nas fazendas vizinhas. Seu pai achava que para dar valor aos negócios,
os filhos deveriam antes aprender o ofício trabalhando como empregados em
outras fazendas. Assim, Robson se empregou nas redondezas e exercia diversas
atividades. Plantava arroz, soja e milho, cuidava dos animais e também foi
domador de cavalos. De início, não recebia dinheiro e ganhava um animal em
troca de dois que amansava, depois, com a pressão dos sindicatos, passou a ser
remunerado.
Após a morte do pai, vendeu a fazenda que havia herdado e
decidiu com a mulher que se mudariam para São Paulo, para proporcionar aos
filhos boas escolas e a oportunidade de cursarem uma faculdade. O sonho acabou
com a morte dos familiares. Procurou abrigo em albergues, passou noites ao
relento. Foi um golpe muito forte, diz ele, de um sujeito, que tinha
propriedade e dinheiro, passar a ser morador de rua.
Quando foi solto pelos sequestradores, Robson percorreu
algumas delegacias para registrar a ocorrência e a Polícia indicou a ele o
Ministério Público. Sem ter onde ficar, o MP o encaminhou a um albergue no
bairro de Santo Amaro. Mas ele não se adaptou à rotina do alojamento e preferiu
morar ao relento.
Uma vez, recorda, tentou entrar na Câmara Municipal para
telefonar aos parentes e foi impedido devido à sua condição. Se sentiu discriminado
e humilhado. “O problema do morador de rua está todo na discriminação. Pensei: A
gente tem que fazer alguma coisa para as pessoas verem que somos seres humanos
como qualquer outro”. Foi quando chamou alguns colegas de albergues para
iniciar o movimento. Robson esclarece que não há apenas um tipo de pessoa
morando nas ruas.
Elas vão para as ruas por “n” motivos, diz, principalmente
por desavenças familiares ocasionadas por consumo de drogas, perda de emprego e
capacidade de sustentar a casa, tragédias, maus tratos etc. Há os que vivem nas
calçadas, nas marquises e viadutos; outros, considerados com pessoas em
situação de rua, moram em albergues, moradias provisórias, aluguéis sociais, favelas
e cortiços e precisaram deixar esse tipo de moradia precária; há os “trecheios”
que vivem se locomovendo de uma cidade para outra e, geralmente, vivem de
artesanato; e há ainda, os “escondidos, que saíram do sistema penitenciário e
vivem de pequenos furtos e do tráfico de drogas, por não conseguir reinserção
na sociedade.
Para cada um desses perfis, é preciso criar uma política
pública específica. Para a população em situação de rua é preciso uma política
de habitação própria, defende Robson. Há
pessoas que moram na periferia e trabalham na região central e por não terem
dinheiro para gastar em condução acabam pernoitando nos albergues.
Bicicloteca
Em 2010, o “Movimento Estadual da População em Situação de
Rua de São Paulo” foi regularizado com ajuda de alguns advogados, que
elaboraram os seus estatutos. O movimento atualmente defende os representados em diversos fóruns. Na
mesma época, Robson teve a ideia de criar uma bicicleta adaptada para servir de
biblioteca ambulante. Na sua garupa foi acoplado um baú para carregar livros de
diferentes gêneros.
Nasce a “Bicicloteca”, que permanece estacionada nas praças
e empresta livros aos moradores de rua, sem que eles se sintam obrigados a
devolvê-los. “Quando eu era morador de rua e ia a uma biblioteca, as pessoas
não queriam sentar perto de mim, eu tentava retirar um livro mas não podia
porque não tinha comprovante de endereço. Então eu imaginei criar uma
biblioteca em que o interessado não precisasse de documentos para retirar
livros. Ele pegaria e levaria o livro, sem compromisso sequer de entregá-lo”.
O primeiro veículo foi doado pelo Instituto Mobilidade
Verde, em cerimônia na Biblioteca Mario de Andrade. No mês seguinte, ele foi
furtado. Uma nova doação, dessa vez do Instituto Melhoramentos, e a bicicleta
ganhou motor elétrico movido a energia solar e wifi doado pelo Pão de Açúcar.
Desde então, o projeto recebeu mais dez veículos que foram doados
por advogados. Atualmente, ele conta com 28 unidades circulando por São
Paulo, em diversos bairros da cidade, municípios do Interior e de outros estados. A marca,
entretanto, foi apropriada, segundo Robson, pelo Instituto Mobilidade Verde,
que a registrou.
Mas quando algum interessado quer implantar o projeto em seu
município, ele procura o Robson que viabiliza o equipamento e o entrega. A
única exigência é que a unidade seja utilizada para atender o morador de rua e
que não haja a obrigatoriedade de a pessoa registrar o nome ou devolver o
exemplar.
O projeto é conhecido internacionalmente no Japão, Europa e
Estados Unidos e conta com um acervo de 78 mil livros provenientes de doação ou
reciclados, armazenados em dois espaços, nos bairros da Bela Vista e Liberdade.
Robson diz que a sua fonte de inspiração foram os livros A
Revolução dos Bichos, de George Orwel, e A Droga da Obediência, um romance de
Pedro Bandeira. Segundo o site www.bicicloteca.com.br, todos os meses são
recolhidas, pela Cooperativa dos Catadores e Catadoras do Glicério, 1 tonelada
de livros de escritórios e residências. Os que estão em pior estado são
aproveitados como sucata pela indústria, mas há os que podem ser reaproveitados
e esses são oferecidos ao projeto.
Outros projetos começaram a ser desenvolvidos a partir desse
primeiro. Robson conta que começou a receber bicicletas de doação e daí surgiu
mais um projeto, o “Pedal Social”, em 2011, que empresta bicicletas aos
moradores de rua que necessitam delas para serviços de entrega de mercadorias
para estabelecimentos comerciais.
O interessado preenche um cadastro e fica de três a seis
meses com a bicicleta, sem custos. Assim, ele tem condições de ter o seu
dinheiro, alugar um quarto e ter uma oportunidade para deixar de morar na
rua.
Já o projeto “Recomeçar Vida Nova”, desenvolvido a partir de
2012, assiste a jovens que saíram da Fundação Casa, a antiga Febem, e que estão
em regime de liberdade assistida. Robson atende a cada três meses, oito
adolescentes. Eles são encaminhados para obter documentos, retomar os estudos e
conseguir o primeiro emprego. O projeto
tem parceiros no Ministério Público Federal, Receita Pública Federal, Defensoria Pública do Estado e da União, escritórios
de advocacia, entre outros.
Adolescentes
Robson reformou a sede do Instituto, construiu um mezanino
com R$ 5 mil conseguidos por um site de crowdfunding, e abriga os jovens no
local, onde antes funcionava um armarinho e que foi cedido por um empresário
para montar a sede do movimento.
R, a adolescente, do início do texto, morou lá. Ela tem 16
anos e fala que foi para as ruas devido a más companhias de escola. Com elas, passou
a consumir maconha, o que não foi aceito pelo pai. Acabou indo parar nas ruas.
Tinha 13 anos quando isso aconteceu e foi encontrada por Wesley, um dos filhos
de criação de Robson. “Eles são assim, vão chegando e acabam me chamando de
pai”, afirma Robson.
Wesley falou para R sobre o local de acolhida dos menores e
ela passou a morar na habitação. Foram quatro anos, afirma. Hoje, a adolescente
mora com Wesley em uma casa que ele herdou do pai biológico, junto com a
filhinha recém nascida. Ela fez curso de panificação e Wesley conseguiu recentemente
um emprego. “Se não fosse pelo senhor Robson, não sei o que seria de mim. Já
dei muito trabalho para ele”, conta R.
Músicos
Os aparelhos musicais que estão na sede do movimento são
utilizados por moradores de rua em eventos do projeto “Resgatando Vidas em
função da Música”, em parceria com a subprefeitura da Sé. Eles têm bandas de
diferentes estilos musicais e se apresentam em promoções culturais da
municipalidade. Uma vez por ano, o movimento promove ainda o projeto “Cultura e
Cidadania para a População de Rua na Cidade de São Paulo”. O evento consiste em
um dia inteiro de ações sociais, como
emissão de documentos, serviços de corte de cabelo, serviços de beleza,
acompanhados de apresentações musicais. São atendidas, nessas ocasiões, de sete
a oito mil pessoas, segundo informações de Robson.
“Sou casado com a morte, ela pediu divórcio e, enquanto não
pede pensão alimentícia, estou no lucro”, afirma Robson que está em tratamento
contra o câncer e outras doenças. Ele diz que o principal responsável pela atual
situação dos moradores de rua é o governo que não tem política pública definida
e baseia suas ações no assistencialismo. Quem se aproveita da situação são
algumas organizações não governamentais que, apesar de receberem muito
dinheiro, gerenciam mal os albergues, no que qualifica como a “indústria da
miséria”.
O assistencialismo também influencia o morador de rua, na
concepção de Robson. Quando consegue alugar um local para morar, ele se vê
obrigado a assumir uma série de responsabilidades, como arrumar dinheiro para o
aluguel ou conseguir comprar alimentos. “Ele pensa que quando vivia em
albergues, não precisava pagar aluguel, e o alimento ele tinha como arrumar.
Quando eu consegui sair da rua e passei a catar papelão para arrumar dinheiro,
vi que podia viver diferente. Então eu passei a dizer aos outros moradores de
rua que, se eu pude sair, ele também podia”, conta Robson. Ele recorda um dia
em que uma mulher lhe perguntou o que ele
precisava para sair da rua. Ele respondeu
que se tivesse dinheiro alugaria uma habitação e nunca mais voltaria. Ela lhe
deu R$ 250 e ele conseguiu um local para morar seus dois filhos de criação. Foi
o que mudou a vida de Robson, segundo ele.
Hoje, Robson reside com os adolescentes na sede do movimento. Lá estabeleceu uma série de
regras para os hóspedes, tais como evitar desperdícios, fixar horários para
refeições, entrada e saída do
estabelecimento e antecipar o aviso para recebimento de visitas. Quem não
cumprir o regulamento está fora.
Robson diz que resolveu deixar o local onde morava e se
transferir para a sede, porque, com o que economizasse, poderia empregar em
suas políticas sociais para a população em situação de rua. Faço tudo o que o
governo não faz, afirma. Providencio fotos para documentos, encaminho para
cursos profissionalizantes, para empregos
e busco recursos para as pessoas pagarem uma pensão para morar.
O que é que falta para o morador de rua, pergunto. Nada, diz
ele. Nós temos a Lei 12.316, o Decreto 40.232 (municipais), que fala tudo sobre
o morador de rua, e o Decreto Federal 7026, só que governo nenhum cumpre a
legislação. O Ministério Público já me processou várias vezes porque eu o
acusei de omisso em cumprir o seu papel de fiscalizar o cumprimento da lei”,
afirma Robson.
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