quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Livraria da Vila, Esperando por Robert Crumb

Mezzo entrevero na fila do Café, estou um pouco fora da ordem. Incrível senso de organização, a importância da fila na sociedade brasileira. Sem querer que fazer disso um tratado sociológico, parece que a única coisa que funciona dentro de uma lógica burra no Brasil é a fila. O fato é que eu e meu filho queríamos tomar café acompanhado de pão de queijo. A atendente contesta a minha posição. "O senhor não está na fila". De fato, não estou na fila. Estou ao lado do caixa, esperando que uma moça seja atendida, para depois eu próprio ser atendido. Impossível que ela não tenha me visto alí, pois estou a poucos centímetros de seu decote. Logo, uma outra
pessoa se posiciona atrás da primeira e ainda uma outra. Faço a defesa de minha preferência pois já estou algum tempo aguardando que a pessoa que estava a minha frente fosse atendida. Bastante contrariado e com cara de mau insisto em minha posição e me vendo decidido, a atendente cede.
Tipos dos mais variado do gênero humano descolado, se somavam ao cenário da livraria, enquanto esperávamos Robert Crumb, Gilbert Shelton e Caco Galhardo. Obeservo uma jovem que conversa com a outra, em posição de pas de deux. A outra em questão, algo fora dos padrões de estética feminina do momento, conversava, conversava, conversava,enfim, falava muito.
Alguns momentos antes, ainda no Café, dois jovens também conversavam: "é bom, quando o bagulho é bom", diz um ao outro.
O auditório já estava cheio quando chegamos, uma hora e meia antes do horário previsto para a palestra. De início, de 50 a 60 pessoas, avalio sem o auxílio de instituto de estatística adequado, ocupam todas as cadeiras de plástico disponíveis. Meia hora depois de nossa chegada já somam a 100, quase a metade, portanto, de pé, nas laterais do auditório e nos corredores. As pessoas se empacientam para receber Crumb e companhia, palestrantes ou debatedores,como queiram. Crumb tem fama de faltar a alguns compromissos, lembro de ter lido algum artigo a respeito. Temo que isso aconteça hoje.
O suspense está armado. Uma pessoa perto de mim comenta que estava convencionado que Crumb e Shelton autografariam seus trabalhos somente para as primeiras 40 pessoas agraciadas com uma senha. Meu filho, para quem Crumb se assemelha a Deus, não tem a fatídica senha. Sairá frustrado dessa?
Assim mesmo compramos o livro Origem, alvo do lançamento da noite.
La fora faz frio, aqui calor. Alguns tipos tinham a cara de personagens de Crumb, outros do proprio cartunista quando jovem, suponho. Há musicos na plateia, poetas nas coxias, atores e atrizes desconhecidos ainda do público, desconfio que até advogados e engenheiros, quem sabe, amantes dos quadrinhos, estudantes, pessoas que idolatram Crumb, a maioria jovens, que sabe lá como, por influência dos pais, quem sabe, gostam do cartunista. Ele próprio depois, se confessaria surpreso de ter tantos fãs no Brasil.
Pouco antes de 10 minutos do horário previsto, vi a fresta do chapéu inconfundível que Crumb exibiu no Brasil, durante a Flip de Paraty, atrás de um cartaz, debaixo das escadas que dão ao auditório.
Também vi um cara na platéia que me parece familiar. Incrível a quantidade de caras que você pensa que pensa que conhece, que estão em alguns eventos que se vai em São Paulo, uma cidade de tão grandes dimensões, mas que parece tão pequena e provinciana. Nos eventos de um determinado gênero sempre há rostos familiares, gente que vai aos mesmos acontecimentos que você gosta. Trata-se de um público cativo. De maneira que, se você quer enconstrar-se com determinada pessoa, é quase garantido que você irá encontrá-la num desses momentos.
Já está na hora prevista para começar a palestra. Detesto quando as pessoas chegam atrasadas e se colocam à nossa frente, depois de horas de espera, no último momento, quando a gente pensa que já conseguiu o melhor lugar possível chegam os retardatários,particularmente os que são mais altos do que eu, que não são poucos. Ôpa, alguém testou o microfone. Silêncio geral, o zum-zum quase acaba. Os espetáculo começa. As regras já foram colocadas: há espaço sobrando no ambiente do café, onde uma tela vai transmitir tudo (pô, mas e se eu quero ver a cara dos caras, ao vivo, ainda que de longe?), senhas distribuídas para autógrafos, sem concessão de quem não as tenha, não é permitido flash, perguntas serão respondidas no final, haverá tradução simultânea, patrocinadas por empresa tal.
Uma menina de uns sete anos driblou as pessoas umas trinta vezes, foi e voltou do fim do auditório para perto das cadeiras, onde os três convidados ficariam, várias vezes e agora se encontra perto deles. Diria que é uma expectadora privilegiada, se é que ela dá a mínima para isso. Tudo para ela é curtição naquela noite.
Uma hora e meia depois de estarmos ali, a maior parte do tempo em pé, avisto primeiro o chapéu de Shandler, Crumb depois e Galhardo por último, que se posiciona entre os dois. É ele que vai conduzir as perguntas aos convidados.
A voz de Crumb é diferente do que imaginava. Esperava ouvir um ancião combalido pelo uso frequente das drogas. Ouço uma voz firme e até certo ponto jovial. A mesa é muito baixa, quase não dá pra ver os rostos dos cartunistas.
Algum desavisado abre um livro desses dirigudi ao público infantil que contém a voz de uma criança que narra o roteiro da obra para outras crianças que ainda não aprenderam a ler. Crumb pergunta se tem alguma criança no recinto e diz,brincando, que aquele não é um local apropriado para crianças.
Galhardo chama Crumb de elo perdido (o mesmo que dinossauro, suponho), todas as referências do artista, segundo ele, são do passado. O cartunista admite que suas referências são de uma época antiga (dos anos 20, segundo entendi), mas completa que as coisas não se perdem no ar.
Galhardo prossegue, agora, se referindo a Shandler, para dizer que "The Fabulous Freak Brothers", seus personagens mais conhecidos, são a cara dos anos 60. Sandler diz que os Freak são ambientados na década de 60, mas que suas referências são dos anos 40. O intermediador pergunta se é verdade que ele foi dispensado do Exército por alegar ser dependente de drogas. Shandler admite laconicamente que sim, principalmente, devido ao consumo de peyote, uma erva mexicana que diluída em chá provocava alucinações de efeito similar ao LSD, além de drogas lícitas e ilícitas, que mexiam com seu estômago, efeito que ele achava legal, porque depois vomitava e ficava curtindo as cores do próprio vômito.
Crumb admite que as drogas tiveram influência sobre o seu trabalho, principalmente o LSD, mas que não as recomenda a ninguém, porque elas mexeram com a sua memória. "Elas ajudam a ter alucinações, mas quando o efeito passa ou você se suicida ou procura outras formas de inspiração".
Questionado sobre quem teve mais influência sobre ele, Buckowisck, de quem ilustrou alguns contos, ou Deus, objeto de seu mais recente trabalho, Origem. Crumb responde que o livro do Gênesis foi escrito por pessoas, não por Deus. "É um livro louco", complementa Shandler, dizendo que quem o escreveu deveria estar drogado, provocando boas risadas na platéia.
"Buckowisck foi mais positivo para mim, como guia espiritual e é mais importante para para mim do que Deus. Ele e os Três Patetas são o que realmente importa na sociedade norte-americana", afirma Crumb. "A Bíblia não traz nada para a vida moderna, ao contrário de Buckowisck", completa Crumb carregando em todas as letras. Sobre São Paulo, Crumb diz que é uma cidade louca. "Estou surpreso que todos vocês não estejam loucos de morar em São Paulo".
Modesto, afirma não saber porque "vocês gostam tanto assim de mim, desconfio que algum dia alguém vai levantar e me dar um tiro".
Shandler comenta a respeito do filme de animação sobre os "The Fabulous Freak Brothers", que está preparando. Afirma que anda atrás de dinheiro para levar adiante a empreitada que já leva seis anos.
Alguém fala sobre uma tal de mulher feijão que Crumb persegue. Ele comenta que as mulheres no Brasil "são grandes (?)|" (com certeza está falando das bundas), fala dos shortinhos agarrados. "Eu gosto desse tipo de mulher, não sei porque. Já se vão mais de 20 anos de análise com Freud e eu ainda não descobri porque", brinca.
Outra pessoa pergunta sobre o trabalho de outro cartunista norte-americano, que minha ignorância admite desconhecer. Picard, acho que esse é o nome, cujo trabalho tanto Crumb quanto Shandler acham por demais depressivo, por influência de sua terra natal, Cleveland, de onde o artista nunca saiu, até a sua morte recente.
Crumb comenta que ele não desenhava tão bem quanto escrevia e que gostou de ter trabalhado com ele.
Os dois, Shandler e Crumb, se declararam a favor da legalização das drogas e Crumb se utilizou de um argumento que considero sensato. Diz ele que nos anos 20, o governo norte-americano colocou o álcool na ilegalidade e foi nessa época que o crime organizado floreceu. "Incrível como não se aprendeu nada com a lição".
O cartunista foi presenteado com vários discos de vinil de 78 rotações. Chegou a perguntar se o Natal já tinha chegado.
Problemas de criação nos Estados Unidos por causa da repressão, ele disse que nunca teve. Apenas com o fisco devido a questões com o imposto de renda. Disse que a idéia de mudar para a França onde se estabeleceu foi de sua mulher, a também cartunista Aline, que estava presente, e que parece ser muito mais jovem que o marido.
Crumb achou as pessoas muito amáveis em São Paulo e no Rio de Janeiro e que a imagem das cidades não condiz com a propaganda de serem muito violentas, disse estar surpreso neste sentido. Mas foi impiedoso com o seu país. "Quanto menos perto dos Estados Unidos voces estiverem, melhor para vocês". O artista se declarou socialista e a exemplo da imagem que faz de nossas principais cidades, também o Crumb apresentado pela imprensa brasileira como chato e irrascível não condiz com o retrato que lhe foi atribuído. Crumb se mostrou gentil, amável e bem-humorado.
Caçadores de autógrafos
Momentos de suspense e tensão durante a caça aos autógrafos. No fim, as limitações impostas pelas senhas caíram por terra e o clima de terrorismo imposto pelos donos da livraria, dois irmãos bastante parecidos no aspecto, também. Meu filho se comportou bravamente indo até o final em sua firme intensão de obter o tão sonhado autógrafo de um de seus maiores ídolos. Fiquei emocionado por ele e por mim. Crumb deixou sua assinatura com dedicatória a meu filho, que, por sua vez, pediu que incluísse o meu nome,soletrando cuidadosamente em Inglês cada letra para que o autor não se enganasse na grafia. Depois fomos comemorar com um bom e sustentoso hamburger, acompanhado de mate com pêssego.

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